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Cartórios além do balcão: o compromisso com a comunidade
Publicado em 06/11/2025
De mutirões de cidadania a regularização fundiária, Cartórios ampliam sua atuação para garantir direitos básicos e inclusão social a milhares de brasileiros.
Os Cartórios brasileiros vêm assumindo um papel cada vez mais ativo em ações de impacto social, extrapolando suas funções tradicionais de emissão de documentos e registros. O levantamento nacional Raio-X dos Cartórios indica que mais da metade (57%) das serventias extrajudiciais já realizam projetos sociais voltados à comunidade. Essa participação demonstra uma visão ampliada do papel dos Cartórios, que vão além do balcão e atuam também como agentes de transformação social.
Uma das frentes mais impactantes de atuação social dos Cartórios é a regularização fundiária, processo de formalização de propriedades em áreas ocupadas. Milhões de famílias históricamente viveram sem título de propriedade, situação que gera insegurança jurídica e limita acesso a serviços básicos. Em resposta, Cartórios de Registro de Imóveis, em parceria com prefeituras e tribunais, têm viabilizado mutirões e programas para entregar escrituras gratuitas ou a baixo custo a famílias de baixa renda.
Os resultados aparecem em diversos estados. Em Minas Gerais, na cidade de Pedra Azul, em janeiro deste ano, garantiu o registro oficial de imóveis para mais de 160 famílias, um “marco na vida” dessas pessoas, que finalmente obtiveram segurança jurídica e novas oportunidades econômicas com a escritura em mãos. O prefeito local, Márcio Souto, enfatizou a diferença concreta na comunidade. Segundo ele, “com este ato de entrega de títulos, trouxemos mais dignidade e sensação de pertencimento a essas pessoas. Além disso, fomentamos a economia, proporcionando condições de financiamento para que elas possam realmente construir e reformar suas casas”, afirmou.
Em outras regiões, números igualmente expressivos refletem o protagonismo dos Cartórios de imóveis. No Pará, de 2019 a 2024 foram regularizadas 30.911 áreas rurais e urbanas, beneficiando mais de 120 mil pessoas. Apenas em 2024, 12.250 títulos de terra foram entregues em mutirões pelo estado, incluindo um grande esforço na cidade de Ananindeua que alcançou 3 mil pessoas (80% mulheres). Programas como o Aqui Tem Dono, em Roraima, concederam mais de 15 mil títulos definitivos de propriedade, levando o governador roraimense Antonio Denarium a afirmar tratar-se “do maior programa de regularização fundiária do Brasil”. Já em São Paulo, o programa Cidade Legal alcançou 88 mil moradias regularizadas entre 2023 e 2024, e a gestão estadual estabeleceu a meta ambiciosa de 200 mil regularizações até 2026, das quais quase 90 mil já se concretizaram nos primeiros 16 meses de governo. “A regularização não é só a entrega de um documento para o morador, mas traz desenvolvimento urbano, segurança jurídica, dignidade para todas as famílias”, afirma Marcelo Branco, secretário de Desenvolvimento Urbano de SP.
Do ponto de vista de quem espera décadas por esse direito, a conquista da escritura representa alívio e felicidade. “Depois de muitos anos… o sentimento é de muita felicidade”, contou Maria Marleide, 59 anos, ao finalmente obter o título da casa onde seu pai de 89 anos vive, em Campo Grande (MS). “Agora, ele tem a certeza de que a casa é dele”, comemorou. História semelhante viveu Ricardo Werner, beneficiado pelo programa Lar Legal em Santa Catarina após mais de duas décadas aguardando a legalização de seu lote. “Este título representa uma vitória, porque é uma longa caminhada… Finalmente consegui regularizar meu imóvel e conquistar a tão sonhada matrícula. Sem o título é bastante complicado porque não conseguimos construir, não conseguimos nem mesmo uma ligação de água ou de luz. Com os documentos, agora é possível fazer um financiamento bancário e, assim, melhorar meu imóvel”, explicou Ricardo.
Se a terra regularizada dá endereço e sustento, o registro civil dá nome e existência legal. Com esse entendimento, uma coalizão de instituições, com participação vital do Cartórios de Registro Civil, vem promovendo desde 2023 a Semana Nacional do Registro Civil – “Registre-se!”, um mutirão de atendimento para erradicar o sub-registro de nascimento e fornecer documentação básica a populações vulneráveis. A força-tarefa é coordenada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Em maio de 2025 ocorreu a 3ª edição do programa, mobilizando atendimentos em todos os estados do país. Em apenas cinco dias, foram realizados mais de 148 mil atendimentos, com emissão de 118 mil documentos, incluindo certidões de nascimento, casamento, óbito, carteiras de identidade (RG) e CPFs. Esse número impressionante é sete vezes maior que o da primeira edição em 2023.
Além de registros civis, essas ações concentradas oferecem uma gama de serviços gratuitos: emissão de segunda via de certidões, alistamento militar, títulos de eleitor, inscrição e atualização em programas sociais (CadÚnico), orientação jurídica, atendimento previdenciário, entre outros. Em São Paulo, por exemplo, a Semana “Registre-se!” aliou-se a um mutirão voltado à população em situação de rua (o Pop Rua Jud) no centro da capital, integrando mais de 30 instituições num só local. Barracas de atendimento foram montadas na Praça da Sé, onde também se distribuiu alimentação, mais de 2 mil marmitas por dia, para acolher o público durante as longas filas.
Os depoimentos de participantes demonstram o impacto direto dessa iniciativa. “Essas ações são importantes porque a população de rua dificilmente tem acesso a tudo que está sendo ofertado aqui”, afirmou Robson César Correia de Mendonça, presidente do Movimento Estadual da População em Situação de Rua de São Paulo, durante o mutirão na Sé. No dia a dia, explica Robson, uma pessoa sem moradia que precise de um documento enfrenta peregrinações de órgão em órgão e muitas vezes desiste diante da burocracia. “Mas aqui ela já encontra todos os órgãos e pode ter agilidade no atendimento”, completou.
Do ponto de vista institucional, esses esforços conjuntos têm revelado um comprometimento crescente das entidades envolvidas. “O programa vem sendo maximizado ano após ano pelos participantes… O resultado é cidadania a quem mais precisa”, observou o juiz Lizandro Garcia Gomes Filho, auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça, sobre a evolução do “Registre-se!”. Em 2025, o magistrado acompanhou de perto os atendimentos no interior do Amazonas e descreveu a cena de indígenas adultos obtendo sua primeira certidão de nascimento já em idade avançada. “Foi emocionante poder participar desse projeto que leva cidadania a tanta gente”, declarou o juiz.
A estratégia desses mutirões vai muito além de emitir papéis: trata-se de trazer pessoas invisibilizadas para o mundo dos direitos. “Essa pessoa [em vulnerabilidade] tem muitos direitos, mas não sabe que tem. E, mesmo que saiba, ela precisa de documentos. Sem os documentos, não consegue exercer a cidadania”, explica a juíza federal Raecler Baldresca, que coordenou a ação na capital paulista. Segundo Baldresca, a ideia é oferecer um atendimento completo: a pessoa tira primeiro todos os documentos de que precisa; em seguida passa pelos serviços da Defensoria Pública, Ministério Público, INSS, Caixa e outros parceiros para já resolver pendências e sair dali com os problemas encaminhados. O mutirão torna-se um balcão único de direitos, reduzindo barreiras que antes pareciam intransponíveis. Baldresca destaca que não apenas moradores de rua são atendidos, migrantes e outras populações marginalizadas também encontram ali orientação e documentação sem obstáculos burocráticos.
No âmbito nacional, projetos e campanhas promovidos pelos Cartórios, em conjunto com o Judiciário e outras entidades, têm mudado a vida de milhares de brasileiros. Uma área de grande alcance social é o reconhecimento tardio de paternidade. Durante décadas, milhões de crianças foram registradas apenas com o nome da mãe na certidão de nascimento. Apenas em 2023, de aproximadamente 2,5 milhões de nascidos no país, mais de 172 mil não tiveram o nome do pai indicado no registro, cerca de 7% do total. Estados como o Amazonas ocupam os primeiros lugares nessa estatística; lá, 9% dos bebês registrados em 2023 não contaram com o nome paterno no documento. Esses números evidenciam um problema social significativo, pois a ausência do reconhecimento paterno impacta não só aspectos afetivos, mas também direitos legais (como pensão alimentícia, herança e inclusão em benefícios governamentais).
Diante desse cenário, o CNJ lançou já em 2010 o programa Pai Presente, seguido por normativas que facilitaram o reconhecimento voluntário nos Cartórios. Em 2012, a Corregedoria Nacional editou o Provimento nº 16, permitindo que mães de crianças sem paternidade registrada procurassem qualquer Cartório de registro civil do país para iniciar o processo de reconhecimento de forma simples. O mesmo provimento autorizou pais que desejam reconhecer espontaneamente seus filhos a fazê-lo diretamente na serventia extrajudicial, tudo de forma gratuita. Essa medida desburocratizou procedimentos que antes exigiam ação judicial, beneficiando especialmente famílias em regiões sem fácil acesso a Varas de Família ou Ministério Público.
Nos anos recentes, defensorias públicas e Cartórios uniram forças em iniciativas como o mutirão “Meu Pai Tem Nome”, de abrangência nacional. Nesses eventos, realizados periodicamente em diversos estados, são ofertados exames de DNA gratuitos, sessões de conciliação e a oficialização imediata da paternidade quando há consenso. O mutirão de 2025 coordenado pela Defensoria Pública de São Paulo, por exemplo, divulgou vagas para que famílias participassem gratuitamente da ação, reforçando que “todos os filhos e filhas têm o direito de conhecer a identidade de seus pais”. Em São Paulo, quase 11.500 crianças foram registradas sem o nome do pai somente no primeiro semestre de 2025, uma realidade que campanhas assim buscam reverter. Cada reconhecimento concretizado representa não apenas um nome acrescido no documento, mas também o resgate do pertencimento e da autoestima para essas famílias.
Histórias pessoais ilustram a importância desse trabalho. Em Manaus (AM), o projeto localmente chamado “Eu tenho Pai” realizou sua 4ª edição em 2024, oferecendo 500 atendimentos em um único dia. O agente de portaria Marcelo Pereira, de 42 anos, foi um dos participantes. “Nos separamos e outro homem acabou registrando a Maria [sua filha de 9 anos]. Mas o pai sempre fui eu”, contou ele, que criou a menina desde bebê. Ao saber do mutirão, Marcelo decidiu oficializar a paternidade socioafetiva: “Viemos para fazer o registro documental da paternidade afetiva… independentemente do resultado [do exame de DNA], não importa. Viemos mais para registrar em meu nome, porque o meu amor ela já tem. Ela já até assina meu sobrenome”, disse. Para Marcelo, ter o nome no documento da filha não mudará o vínculo de amor já existente, mas facilitará a vida prática: com o registro paterno, ele passa a ter legitimidade para resolver questões escolares e médicas da criança, responsabilidades que antes ficavam apenas a cargo da mãe. Do ponto de vista da pequena Maria Alice, o momento também foi marcante: ela mal podia esperar para emitir sua nova Carteira de Identidade com o sobrenome do pai, segundo relatou à Defensoria.
Casos como esse demonstram que o reconhecimento de paternidade vai muito além do registro em si, ele significa garantia de direitos, vínculo jurídico-familiar e acolhimento afetivo. “Eu quero que minha filha possa olhar o documento e dizer ‘eu tenho o sobrenome do meu pai’”, resumiu Marcelo, enfatizando a importância simbólica e prática desse ato. Graças à possibilidade de realizar tudo diretamente no Cartório, em parceria com os órgãos de assistência, milhares de famílias estão conseguindo sanar uma lacuna documental e emocional histórica.
Seja entregando títulos de propriedade, documentos de identidade ou o nome de um pai em uma certidão, os Cartórios extrajudiciais mostram um comprometimento crescente com a inclusão social. Muitas dessas iniciativas contam com apoio do Judiciário, Ministério Público, Defensorias e governos, mas têm nos cartorários verdadeiros protagonistas da cidadania. Nos estados, Associações de Notários e Registradores locais promovem campanhas solidárias, arrecadação de donativos, divulgação de direitos e voluntariado, reforçando o laço entre a serventia e a sociedade.
A própria categoria tem buscado exercer seu papel cidadão. A campanha Imposto Solidário estimula os oficiais de Cartório a destinarem 6% do seu Imposto de Renda devido a fundos sociais de apoio a crianças, adolescentes e idosos, convertendo tributos em solidariedade.
Para os líderes do setor, essa orientação social não é acessória, mas parte da missão. “A possibilidade de destinar parte do Imposto de Renda reforça o papel cidadão das serventias extrajudiciais. Nosso objetivo é estimular os oficiais a se engajarem nessa causa e mostrarem que a atuação dos Cartórios vai muito além do balcão — ela também gera impacto social e humano”, destaca Márcio Romaguera, presidente do Sinoreg-ES (Sindicato dos Notários e Registradores do Espírito Santo).
Gians Fróiz, AssCom ANOREG/BR