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Artigo - A inconstitucionalidade implícita da busca e apreensão extrajudicial realizada por empresas privadas: Uma análise crítica da decisão do STF - Por Emílio Guerra

Publicado em 08/07/2025
Notícia A fundamentação constitucional da decisão: O paradigma do art. 236 da CF/1988

2.1. Os fundamentos da constitucionalidade


O brilhante voto do ministro Dias Toffoli estabelece como ratio decidendi da constitucionalidade dos procedimentos extrajudiciais três elementos essenciais:

a) A natureza constitucional da delegação: O relator reconhece que a desjudicialização legítima pressupõe a transferência de competências para agentes constitucionalmente legitimados, observando que "o credor fiduciário, mediante comprovação da mora, requererá ao oficial de registro de títulos e documentos que notifique o devedor fiduciante", destacando que "o oficial do cartório profere uma espécie de juízo administrativo sobre a defesa apresentada pelo devedor no procedimento extrajudicial".

b) A fé pública como pressuposto de segurança jurídica: O voto enfatiza que "os atos atribuídos ao oficial registrador têm natureza meramente administrativa. Ele realiza comunicações, faz um juízo administrativo sobre o não cabimento da dívida e averba a consolidação da propriedade, conforme o caso", sendo fundamental que "nada há nesses atos, em princípio, que sugira a necessidade de atuação do Poder Judiciário. A averbação da consolidação da propriedade dispensa a intermediação judicial, correspondendo ao atesto da circunstância objetiva de ausência de quitação da dívida pelo devedor, o que pode ser realizado por agente imparcial dotado de fé pública".

c) O controle do Poder Judiciário: O relator é categórico ao afirmar que "o procedimento se desenvolve perante oficial registrador, autoridade imparcial cujos atos estarão sempre sujeitos a controle judicial - possibilidade decorrente diretamente da Constituição de 1988".

2.2. A interpretação conforme como delimitação constitucional

Significativamente, o STF conferiu interpretação conforme à Constituição aos parágrafos 4º, 5º e 7º do art. 8º- C do decreto-lei 911/1969, estabelecendo que "nas diligências para a localização do bem móvel dado em garantia em alienação fiduciária e em sua apreensão, devem ser assegurados os direitos à vida privada, à honra e à imagem do devedor; a inviolabilidade do sigilo de dados; a vedação ao uso privado da violência; a inviolabilidade do domicílio; a dignidade da pessoa humana e a autonomia da vontade".

Esta interpretação conforme não representa uma mera recomendação, mas uma conditio sine qua non para a constitucionalidade do procedimento, estabelecendo limites intransponíveis que somente podem ser observados por agentes dotados das prerrogativas constitucionais adequadas.

A lacuna sistemática: O silêncio sobre o art. 8-E

3.1. A omissão eloquente

Uma análise sistemática da decisão revela uma omissão significativa: o STF não examinou expressamente a constitucionalidade do art. 8-E do decreto-lei 911/1969, que autoriza empresas privadas prestadoras de serviços aos Detrans estaduais a realizarem procedimentos de busca e apreensão extrajudicial. Esta omissão não é acidental - ela decorre da impossibilidade lógica de conciliar os fundamentos da constitucionalidade estabelecidos na decisão com a natureza jurídica destes agentes privados.

3.2. A ausência dos pressupostos constitucionais

As empresas privadas referidas no art. 8-E carecem dos três elementos fundamentais que, segundo a decisão do STF, justificam a constitucionalidade da desjudicialização:

a) Ausência de legitimação constitucional: Estas entidades não estão contempladas no modelo de delegação do art. 236 da CF/1988, operando à margem do sistema constitucional de transferência de funções públicas.

b) Carência de fé pública: Desprovidas da prerrogativa da fé pública, seus atos não gozam da presunção de veracidade que fundamenta a segurança jurídica do procedimento extrajudicial.

c) Escape ao controle judicial: Não estão submetidas ao regime de fiscalização do Poder Judiciário estabelecido para os serviços notariais e registrais, operando em uma zona de indefinição institucional.

A doutrina da inconstitucionalidade por analogia negativa

4.1. O raciocínio jurídico implícito

A metodologia interpretativa adotada pelo STF nas ADIs em análise estabelece um silogismo jurídico inequívoco:

Premissa maior: A constitucionalidade da desjudicialização pressupõe delegação a agentes dotados de fé pública e submetidos ao controle judicial (art. 236, CF/1988).

Premissa menor: As empresas privadas do art. 8-E carecem de fé pública e não estão submetidas ao controle judicial estabelecido constitucionalmente.

Conclusão necessária: Os procedimentos realizados por estas empresas são constitucionalmente ilegítimos.

4.2. A impossibilidade de interpretação conforme

Diferentemente dos arts. 8-B a 8-D, que puderam receber interpretação conforme porque realizados por agentes constitucionalmente legitimados, o art. 8-E não comporta salvaguarda interpretativa. A ausência das prerrogativas constitucionais necessárias nos agentes privados torna impossível a compatibilização do dispositivo com os fundamentos estabelecidos na decisão.

A violação dos direitos fundamentais

5.1. A reserva de jurisdição e a inviolabilidade domiciliar


O próprio voto do ministro Dias Toffoli reconhece a precedência da ADI 1.668, na qual "o Tribunal analisou vários dispositivos relativos à criação e à organização da Agência Nacional de Telecomunicações. Dentre essas normas, constava preceito autorizador da realização de busca e apreensão pela agência, independentemente de ordem judicial. Tal norma foi considerada inconstitucional, por violar a inviolabilidade de domicílio".

Se uma agência reguladora federal, dotada de poder de polícia e submetida a controles públicos específicos, não pode realizar busca e apreensão sem ordem judicial, com maior razão empresas privadas desprovidas de qualquer prerrogativa pública não podem exercer tais funções.

5.2. A vulnerabilidade procedimental

A ausência de fé pública tornaria os procedimentos realizados por empresas privadas intrinsecamente vulneráveis. É que a ausência de fé pública implica que os documentos produzidos por entidades privadas têm valor de meros documentos particulares, sem a presunção de autenticidade e veracidade que caracteriza os instrumentos públicos".

Esta vulnerabilidade probatória compromete não apenas a eficácia do procedimento, mas sua própria legitimidade constitucional, pois a diferença no regime probatório representa um dos principais riscos da desjudicialização para entidades sem fé pública. A vulnerabilidade probatória pode comprometer a própria finalidade da desjudicialização, que é conferir celeridade e segurança aos procedimentos.

A jurisprudência consolidada do STF

6.1. O precedente da ADI 1.668


A decisão do STF na ADI 1.668, expressamente citada no voto vencedor, do ministro Dias Toffoli, estabeleceu que "a medida, efetuada sem ordem judicial, com base apenas no poder de polícia de que é investida a agência, desrespeita a garantia constitucional da inviolabilidade do domicílio (art. 5º, XI, da Constituição)".

Este precedente é diretamente aplicável ao caso das empresas privadas, que, desprovidas até mesmo de poder de polícia, carecem de qualquer fundamentação constitucional para a realização de medidas constritivas.

6.2. A coerência sistemática da jurisprudência

A jurisprudência do STF tem sido consistente em exigir legitimação constitucional específica para a delegação de funções públicas. Como destacado no voto, "a jurisprudência do STF tem se orientado pela constitucionalidade de procedimentos extrajudiciais de execução", mas sempre condicionada à observância do modelo constitucional estabelecido.

A interpretação sistemática da constituição

7.1. O princípio da unidade constitucional


A interpretação sistemática da Constituição Federal não permite a criação de ilhas de imunidade constitucional. Se o art. 236 estabelece o modelo para delegação de funções públicas na área jurídica, não é constitucionalmente admissível que o legislador ordinário crie formas alternativas de delegação que contornem este paradigma.

7.2. A supremacia da Constituição

Como observa a doutrina constitucional citada no artigo "A desjudicialização no Brasil: origem, evolução e aspectos constitucionais"1, "a desjudicialização constitucionalmente adequada é aquela realizada dentro dos estritos parâmetros do art. 236 da Constituição Federal, com a transferência de competências para agentes dotados de fé pública e submetidos ao controle administrativo direto do Poder Judiciário".

As consequências práticas da inconstitucionalidade

8.1. A insegurança jurídica sistêmica


A operação de empresas privadas em procedimentos de busca e apreensão extrajudicial cria uma zona de insegurança jurídica que compromete todo o sistema. Como alertado na literatura especializada citada no artigo "A desjudicialização no Brasil: origem, evolução e aspectos constitucionais"1, "a judicialização posterior dos procedimentos extrajudiciais pode ser mais complexa e morosa do que a simples realização judicial do ato original, pois envolve não apenas o exame do direito material, mas também a análise da validade e regularidade do procedimento extrajudicial já realizado".

8.2. O efeito paradoxal

Paradoxalmente, a tentativa de desjudicialização por meio de agentes ilegítimos pode resultar em maior judicialização, contrariando o objetivo do movimento, visto que os atos praticados por agentes desprovidos de fé pública são absolutamente vulneráveis a qualquer alegação de irregularidade, quando o ônus da prova quanto à regularidade do ato caberá aos agentes privados. Contrariamente, atos praticados por agentes dotados de fé publica, por gozarem de presunção de veracidade, invertem o ônus da prova quanto a qualquer irregularidade alegada, casos em que o ônus da prova caberá a quem fizer a alegação.

A necessidade de declaração expressa de inconstitucionalidade

9.1. A exigência de coerência judicial


Embora a decisão do STF nas ADIs 7.600, 7.601 e 7.608 contenha implicitamente a declaração de inconstitucionalidade dos procedimentos realizados por empresas privadas, a segurança jurídica clama para que esta conclusão seja expressa e vinculante.

9.2. A proteção dos direitos fundamentais

A omissão na declaração expressa da inconstitucionalidade do art. 8-E deixa os cidadãos em situação de vulnerabilidade, pois permite que empresas privadas continuem realizando procedimentos constitucionalmente ilegítimos até que sejam especificamente questionadas.

Conclusões

A análise sistemática da decisão do STF nas ADIs 7.600, 7.601 e 7.608 demonstra inequivocamente que os fundamentos da constitucionalidade estabelecidos pelo Tribunal são incompatíveis com a atuação de empresas privadas em procedimentos de busca e apreensão extrajudicial. Ao basear a legitimidade da desjudicialização na delegação constitucional, na fé pública e no controle judicial, o STF estabeleceu parâmetros que excluem necessariamente os agentes privados do art. 8-E do decreto-lei 911/1969.

A inconstitucionalidade destes procedimentos não decorre apenas da ausência das prerrogativas necessárias, mas da violação direta dos princípios fundamentais que orientam o sistema constitucional brasileiro. A reserva de jurisdição, a inviolabilidade domiciliar, o devido processo legal e a segurança jurídica são valores que não podem ser relativizados em nome de uma suposta eficiência administrativa.

A conclusão é inescapável: se o STF, pelo brilhante voto do relator, ministro Dias Toffoli,  declarou constitucional a desjudicialização em razão de ser realizada por agentes dotados de fé pública e submetidos ao controle judicial, implicitamente declarou inconstitucional a desjudicialização realizada por agentes desprovidos destas prerrogativas. O que faltou foi tornar explícita esta conclusão lógica e juridicamente necessária.

A coerência do sistema constitucional brasileiro e a proteção dos direitos fundamentais exigem que esta lacuna seja preenchida, seja por nova manifestação do STF, seja pela atuação do Ministério Público ou de entidades legitimadas, de modo a tornar expressa a inconstitucionalidade que já está implícita na fundamentação da decisão.

O Estado Democrático de Direito não pode conviver com zonas de indefinição constitucional que permitam a operação de agentes privados em funções para as quais não possuem legitimação. A Constituição Federal de 1988 estabeleceu um modelo claro e taxativo para a desjudicialização, e qualquer desvio deste paradigma representa uma ameaça à segurança jurídica e à supremacia constitucional.

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1 GUERRA, Emílio. A desjudicialização no Brasil: origem, evolução e aspectos constitucionais. Migalhas Notariais e Registrais, 2025. Disponível aqui. Acesso em: 2/7/25.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7.600/DF, 7.601/DF e 7.608/DF. Relator: Min. Dias Toffoli. Julgado em: 30/6/25. DJe, 2025.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988.

BRASIL. Decreto-Lei nº 911, de 1º de outubro de 1969. Altera a Lei de Falências, regula o processo de concordata preventiva e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 1969.

BRASIL. Lei nº 14.711, de 30 de outubro de 2023. Altera o Decreto-Lei nº 911, de 1º de outubro de 1969, para dispor sobre o procedimento de busca e apreensão extrajudicial de bens móveis. Brasília, DF: Presidência da República, 2023.

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Fonte: Migalhas
Autor: Emílio Guerra
Em: 07/07/2025