O provimento CNJ 195/25, que agora passa a ser conhecido como “Provimento do IERI-e”, regulamentou vários procedimentos realizados nos registros imobiliários, criando o IERI-e Inventário Eletrônico Estatístico do Registro de Imóveis, implantando formalmente o SIG-RI – Sistema de Informações Geográficas do Registro de Imóveis e estabelecendo diretrizes para as averbações de saneamento da matrícula. Uma das novidades mais proeminentes é a normatização de um Processo de Autotutela Registral realizado diretamente no registro de imóveis, previsto no art. 440-BG do CN/CNN/CNJ-Extra – Código Nacional de Normas do Foro Extrajudicial.
O procedimento de autotutela registral não é necessariamente novidade na legislação brasileira, visto que o art. 214 da LRP já estabelece as diretrizes de tal processo na via administrativo-judicial (perante o juiz corregedor). A novidade em si encontra-se na regulação deste procedimento agora na via administrativo-extrajudicial (diretamente em cartório, sob a presidência do registrador de imóveis).1
Autotutela administrativa e autotutela registral
O conceito de “Autotutela” advém do Direito Administrativo e, nesse contexto, representa o poder que a Administração Pública possui de rever, de ofício ou mediante provocação, os seus próprios atos, quando eivados de algum vício, independentemente de manifestação judicial. Esse poder é reconhecido pela Suprema Corte brasileira, inclusive, desde a década de 19602 por meio das súmulas 3463 e 4734 do STF.
Atualmente, podemos extrair da própria Constituição Federal o poder de autotutela, notadamente a partir dos princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, que fundamentam a atuação da Administração Pública (art. 37, CF). Sob o aspecto infraconstitucional, os arts. 53 e 54 da lei 9.784/1999 dão a base legal para o poder-dever de anular atos administrativos ilegais.
A autotutela registral – embora se aproxime em certos aspectos da autotutela administrativa – não tem exatamente o mesmo escopo. A autotutela administrativa acaba por ser mais ampla, haja vista que se dirige tanto a corrigir vícios dos atos administrativos como também revogar esses atos por conveniência ou oportunidade. De sua vez, no âmbito da autotutela registral não cabe ao registrador qualquer análise de mérito administrativo, senão apenas a verificação da existência de nulidades e sua respectiva correção.
Outra diferença marcante está no fato de que o oficial de registro de imóveis não irá fazer o cancelamento ou modificação de um ato registral sem o estabelecimento do contraditório entre as partes interessadas. Na via administrativa, em geral, a autotutela acaba sendo feita por meio de revogação de ato administrativo anterior, sem a oitiva de eventuais terceiros prejudicados, em geral, cabendo a estes discutir sobre seus direitos, na via administrativa ou judicial, a posteriori. De outro lado, a autotutela registral exige a triangularização prévia do procedimento, com a participação do registrador, presidindo os atos, e das partes que eventualmente forem atingidas. Como se percebe, não se trata de mero procedimento, mas sim um verdadeiro “processo”, na acepção do Direito Processual moderna, visto que o contraditório sempre estará presente.5
Competência do registrador de imóveis
Em relação à competência para a realização deste ato por parte do registrador de imóveis, trata-se de interpretação da legislação consentânea a ideia de extrajudicialização (ou, como chamam alguns: desjudicialização).6
Ademais, também vai ao encontro com a autonomia ou independência destinada aos notários e registradores, na qualidade de profissionais do direito, no gerenciamento de sua serventia, em sua atuação funcional e na interpretação e integridade jurídica.
Outrossim, demonstra a evolução do sistema registral de uma legalidade estrita para um princípio de juridicidade, mediante a aplicação de polícia jurídica registral, que consiste no dever do registrador de qualificar os títulos e os atos jurídicos sob sua tutela, expurgando as ilicitudes porventura existentes, a fim de não dar guarida a atos ou fatos contrários ao direito, bem como zelar pela livre e correta adequação dos atos praticados em sua circunscrição.
O processo de autotutela registral decorre, ademais, das diretrizes fixadas na norma legal positiva, que estabelece que o ato inscrito pode ser retificado ou anulado, se não exprimir a verdade dos fatos (art. 213 da LRP e art. 1.247 do CC).
Subsidiariedade do procedimento
Conforme dispõe o caput do art. 440-BG do CN/CNN/CNJ-Extra, o processo de autotutela registral será realizado “Nos casos de alta indagação ou naqueles em que exista potencial litígio entre titulares de direitos registrados ou averbados nas matrículas ou transcrições”.
Casos de alta indagação7 são aqueles que demandam a produção de provas que não estão nos autos, exigindo dilação probatória ampla e contraditório pleno. No contexto do registro de imóveis, portanto, são aqueles casos em que não é possível resolver apenas com as informações existentes do acervo do cartório, exigindo exame aprofundado e formação de um conjunto probatório externo.
A existência de “potencial litígio” entre titulares de direito constantes da matrícula também determina a abertura de contraditório prévio. Assim, havendo possibilidade de conflito em razão de possível prejuízo a alguma das partes, compete ao oficial de registro promover a notificação destas, possibilitando que se manifestem, entrem em acordo ou produzam provas.
A utilização do processo de autotutela registral é, portanto, residual ou subsidiária. Isso porque os casos que não dependam de dilação probatória (alta indagação) ou que não tenham risco de controvérsia (potencial litígio) podem ser resolvidos por outros meios, mediante procedimento próprio, a exemplo do procedimento de retificação administrativa do art. 213 da LRP ou então outros procedimentos legais ou constantes de atos administrativos, como é o caso daqueles regulados pelo próprio provimento 195/25, a exemplo do saneamento de sobreposições de área entre imóveis, da regularização de duplicidade e multiplicidade de matrículas, da restauração e suprimentos do acervo etc8. Nada obstante, se houver maior complexidade probatória ou possível discussão entre partes interessadas, o processo de autotutela será uma meio procedimental possível para resolução de conflitos extrajudicialmente.
Além disso, por óbvio, se a questão estiver judicializada, ou seja, havendo processo judicial com o mesmo objeto, não caberá a via administrativa da autotutela registral, salvo se as partes eventualmente desistirem da ação perante o Poder Judiciário.
Igualmente, se houver procedimento de autotutela registral tramitando na via administrativo-judicial, perante o juiz corregedor ou a Corregedoria competente (art. 214 da LRP), com mesmas partes, pedido e causa de pedir, também não caberá a abertura de procedimento de autotutela registral diretamente em cartório (via administrativo-extrajudicial), aplicando-se as mesmas regras atinentes à existência de processo contencioso na seara da Justiça Comum.
Do processo de autotutela registral
Conforme preceitua o art. 440-BG do provimento 195/25 do CNJ, a marcha processual da autotutela registral, na via administrativo-extrajudicial, é a seguinte:
Importante destacar que o registrador possui amplo poder de presidência do processo de autotutela registral, podendo determinar as apurações dos elementos de prova que forem pertinentes. Conforme § 2º do art. 440-BG, “Na condução do procedimento de autotutela registral, ou mesmo antes da abertura do procedimento, o oficial de registro poderá exigir as provas necessárias para comprovação do direito das partes interessadas, inclusive laudos técnicos, certidões e outros documentos oficiais, ata notarial ou realização de vistoria in loco”.
Conclusão
A normatização do procedimento de autotutela registral pelo provimento CNJ 195/25 (“Provimento do IERI-e”) representa um avanço significativo na busca por maior eficiência e segurança jurídica no âmbito do Registro de Imóveis. Ao disciplinar a atuação do registrador em situações de alta indagação ou potencial litígio, a norma reforça a importância do contraditório e da participação ativa das partes interessadas, conferindo maior transparência e legitimidade aos atos praticados extrajudicialmente.
Além disso, o ato normativo deve refletir em um novo modo de pensar dos próprios oficiais de registro de imóveis, sobretudo, pela ampliação dos poderes procedimentais para decidir e solucionar diretamente as demandas, tornando os procedimentos mais ágeis, simples e acessíveis aos usuários, com menos burocracia e maior eficiência.
A distinção entre autotutela administrativa e autotutela registral evidencia a especificidade do papel do registrador, que não atua com discricionariedade, mas sim dentro dos limites quanto verificação de nulidades, sempre com respeito ao devido processo legal. O procedimento, ao exigir a notificação das partes e prever etapas claras de manifestação, conciliação e eventual remessa ao juiz corregedor, demonstra maturidade institucional e alinhamento com um princípio de juridicidade, mais consentâneo com o atual sistema registral brasileiro.
A adoção desse modelo fortalece a extrajudicialização de conflitos, reduzindo a sobrecarga do Judiciário e reconhecendo a competência do registrador de imóveis para o controle da malha imobiliária. Além disso, valoriza a independência funcional desse profissional do direito, conferindo-lhe maior autonomia para atuar como protagonista de uma jurisdição administrativa dos registros imobiliários.
Fonte: Migalhas