A alienação fiduciária de bens imóveis é regulada pelo CC e pela lei 9.514, de 20/11/1997. Nos termos do art. 23, § 2º, da referida lei, incumbe ao fiduciante a obrigação de arcar com o pagamento do IPTU - Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana e das taxas condominiais incidentes sobre o bem.
Contudo, causa-nos apreensão a oscilação jurisprudencial quanto a interpretação desta regra: em algumas situações entende-se que cabe ao fiduciante o dever suportar obrigações propter rem, e em outras considera que a responsabilidade pelo cumprimento de obrigações propter rem deve recair sobre o credor fiduciário.
As obrigações de pagar IPTU e taxas condominiais são qualificadas como obrigações reais ou obrigações propter rem, pois decorrem da titularidade de um direito real e são caracterizadas por sua ambulatoriedade. A ambulatoriedade das obrigações propter rem implica no fato da transferência do direito real sobre o bem resultar na transmissão da obrigação real. Neste caso, a ambulatoriedade facilita a cobrança dos créditos em favor do condomínio.
Assim, em razão do caráter de obrigação propter rem: "as dívidas passam a aderir a cada unidade imobiliária, transmitindo-se automaticamente ao novo proprietário, em caso de alienação. Com isso, o adquirente da casa ou do apartamento será responsável pelo pagamento das dívidas condominiais em atraso, assumindo, assim, o passivo deixado pelo alienante".1 Neste sentido, o STJ já decidiu que a ação de cobrança de dívidas condominiais também pode ser proposta em desfavor do arrendatário do imóvel (STJ, REsp 1.704.498/SP, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 29/3/22).
Nos termos do art. 22 da lei 9.514/1997, define-se o contrato de alienação fiduciária de imóveis como "o negócio jurídico pelo qual o fiduciante, com o escopo de garantia de obrigação própria ou de terceiros, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel". Lado outro, o art. 23 da lei 9.514/1997 prescreve que o negócio jurídico em questão constitui-se mediante o registro do contrato de alienação fiduciária no cartório de registro de imóveis. Realizado o registro da avença, verifica-se o desdobramento da posse: atribui-se ao devedor fiduciante a posse direta e ao credor fiduciário a posse indireta (art. 23, § 1º). Ademais, o § 2º do art. 23 da mesma lei imputa ao fiduciante "a obrigação de arcar com o custo do pagamento do IPTU - Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana incidente sobre o bem e das taxas condominiais existentes".
Nesta toada, o registro do contrato de alienação fiduciária importa na transmissão da propriedade resolúvel ao credor fiduciário (propriedade fiduciária); sem que se confunda com a propriedade plena, conforme preceitua o art. 1.367 do CC. Até a extinção da propriedade fiduciária, o bem objeto do negócio não pode responder pelas dívidas do fiduciante. É o patrimônio do devedor que responde pelo pagamento de suas dívidas, nos termos do art. 789 do CPC e do art. 391 do CC. É bem verdade que existem bens do devedor que não respondem por suas obrigações, e podem existir bens de terceiros sujeitos a tais obrigações. Na primeira situação, pode-se destacar as hipóteses de impenhorabilidade (art. 883 do CPC); e na segunda situação pode-se mencionar a expropriação dos bens do fiador.2
Contudo, pelas dívidas referentes às taxas condominiais somente poderão responder os direitos aquisitivos pertencentes ao fiduciante, nos termos do art. 835, XII do CPC.3 Ademais, o credor fiduciário dispõe da ação de embargos de terceiro para afastar eventuais constrições ilegítimas sobre o imóvel (art. 674, § 1º, do CPC). A alienação fiduciária pode ser considerada uma supergarantia, pois permite ao credor assumir a propriedade do bem objeto da dívida para que possa reivindicá-lo no caso de inadimplemento do fiduciante, "assim ficando isento da obrigação de concorrer com quaisquer outros credores, inclusive os detentores de créditos trabalhistas e por acidentes de trabalho".4
Neste caso, não obstante a transferência do direito de propriedade ao credor fiduciário, há um relativo esvaziamento das faculdades de uso e fruição, que seguem de fato com o devedor fiduciante. É em razão disto que, para fins contábeis, o bem alienado fiduciariamente é considerado como parte do patrimônio do fiduciante, e deve ser informado nas declarações de imposto de renda dele; apesar do direito de propriedade seguir formalmente com o fiduciário até a quitação do financiamento. Há, portanto, uma espécie de "direito expectativo do devedor de se tornar proprietário"5.
Entretanto, verifica-se uma preocupante divergência entre a 1ª e a 2ª seção do STJ em relação a responsabilidade pelo pagamento de obrigações reais: enquanto a 1ª seção firmou posição no sentido de não imputar responsabilidade ao credor fiduciário pelo pagamento de IPTU6, a 2ª seção decidiu que o imóvel alienado fiduciariamente pode ser penhorado por dívidas condominiais.7
A questão da responsabilidade pelo pagamento do IPTU de imóvel alienado fiduciariamente foi apreciada pelo STF no julgamento do Tema 1.139 da repercussão geral, que também concluiu pela responsabilidade do fiduciante pelo pagamento das taxas condominiais: "Responde o fiduciante pelo pagamento dos impostos, taxas, contribuições condominiais e quaisquer outros encargos que recaiam ou venham a recair sobre o imóvel, cuja posse tenha sido transferida para o fiduciário, nos termos deste artigo, até a data em que o fiduciário vier a ser imitido na posse".8
Não obstante as respeitáveis manifestações dos ministros que compõem a 2ª seção do STJ, o argumento de que o bem de família é penhorável por dívidas condominiais não é adequado para o caso, pois a lei 8.009/1990 prevê expressamente tal exceção, além de ser tratar de penhora de bem pertencente ao devedor. Segundo o ministro Raul Araújo, relator do julgamento dos 3 recursos especiais afetados a 2ª seção do STJ, as normas relativas ao negócio fiduciário não se sobrepõem a direitos de terceiros que não anuíram a ele.9 Para o ministro, o banco deveria quitar a dívida do devedor fiduciante para evitar a penhora e depois cobrar dele.
Além disso, como bem destacou o ministro Luiz Fux no julgamento do Tema 1.139, "não se mostraria razoável entender que o banco agravado pretendesse adquirir os milhares de imóveis que financia atualmente na modalidade alienação fiduciária".
Soma-se a esse argumento o fato de que a atribuição da responsabilidade pelo pagamento de IPTU e taxas condominiais decorre diretamente da lei (art. 27, § 8º, da lei 9.514/1997) e não de mera disposição contratual, não havendo margem para convenções em sentido diverso.
Para além dos impactos econômicos que a penhora de imóveis alienados fiduciariamente pode causar (agravando o risco sistêmico da concessão de crédito imobiliário), deve-se considerar o risco à integridade da jurisprudência do STJ, ante a discrepância entre suas seções e a afronta à autoridade do STF.
Por fim, a divergência entre as seções poderá ser solucionada mediante a interposição de embargos de divergência, nos termos do art. 266 do regimento interno do STJ.10
_____________
1 CARNAÚBA, Daniel Amaral; REINIG, Guilherme Henrique Lima. O regime das obrigações propter rem e as despesas condominiais. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 7, n. 2, 2018. Disponível em: https://civilistica.emnuvens.com.br/redc/article/view/339. Acesso em: 21 mar. 2025.
2 RODRIGUES, Maria Isabel Gallotti; SANTOS, Caio Victor Ribeiro dos. Teoria da dualidade do vínculo obrigacional e execução de dívida de condomínio: uma análise sobre o RESP 1.442.840/PR. Revista de Processo, v. 351 (maio de 2024). São Paulo: RT, p. 317-337.
3 Cf: "De fato, havendo alienação fiduciária, a propriedade resolúvel é transferida ao credor fiduciário, de modo que o bem deixa de pertencer ao devedor (art. 1.361, CC). Assim, o ato constritivo somente poderia recair sobre os direitos do devedor fiduciário, conforme prevê o art. 835, XII, do CPC/2015" (BARINONI, Rodrigo. Art. 674. In: STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle; CUNHA, Leonardo Carneiro da (orgs.). Comentários ao Código de Processo Civil. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 923).
4 NORONHA, Fernando. A alienação fiduciária em garantia e o leasing financeiro como supergarantias das obrigações. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 845 (2006). São Paulo: RT, p. 37-49.
5 PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das coisas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 599. E-book.
6 No julgamento do Tema 1.158 dos Recursos Repetitivos em 12.03.2025, com a fixação da seguinte tese: "O credor fiduciário, antes da consolidação da propriedade e da imissão da posse do imóvel objeto da alienação fiduciária, não pode ser considerado sujeito passivo do IPTU, uma vez que não se enquadra em nenhuma das hipóteses previstas no artigo 34 do CTN". Julgamento unânime.
7 Tratam-se de três Recursos afetados a 2ª Seção do STJ, que (apesar de não terem sido qualificados como Repetitivos) foram afetados para a pacificação do tema no âmbito de 2ª Seção (REsp 1.929.926, REsp 2.082.647 e REsp 2.100.103). A decisão foi por maioria de 5 a 4, e ainda não houve divulgação da tese fixada.
8 In casu, o Min. Fux consignou em seu voto: "Em se tratando de contrato de financiamento de imóvel com alienação fiduciária, a posse que autoriza incidência do IPTU é aquela exercida pelo devedor fiduciante com 'animus domini', que passa a ser responsável pelo seu recolhimento enquanto mantiver adimplido o contrato". Disponível em.: https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verPronunciamento.asp?pronunciamento=9355435#:~:.... Acesso em 23 de março de 2025.
9 Consignou o Ministro: "Que privilégio seria esse erigido em detrimento de todos os demais condôminos proprietários não signatários de contrato de alienação fiduciária de coisa imóvel? O que outros condôminos têm que ver com contrato firmado entre banco e devedor? Nada".
10 Regimento Interno do STJ, art. 266: "Cabem embargos de divergência contra acórdão de Órgão Fracionário que, em recurso especial, divergir do julgamento atual de qualquer outro Órgão Jurisdicional deste Tribunal, (.). § 2º A divergência que autoriza a interposição de embargos de divergência pode verificar-se na aplicação do direito material ou do direito processual".
NOTÍCIAS | 29 de abril à 09 de maio | |
---|---|---|
quinta-feira 08 maio / 2025 | STJ: Devedor pode ser notificado via e-mail em busca e apreensão | |
quarta-feira 07 maio / 2025 | A questão da penhora de imóveis alienados fiduciariamente e um apelo à coerência | |
terça-feira 06 maio / 2025 | STJ vê supressio e permite uso de laje como "garden" por condômino Condomínio não indenizará após portão eletrônico danificar veículo | |
segunda-feira 05 maio / 2025 | STJ: Vendedor pode responder por dívida condominial após posse do comprador | |
sexta-feira 02 maio / 2025 | Fundo cessionário de crédito não deve explicações ao cedente Artigo - Mandato em causa própria | |
quarta-feira 30 abril / 2025 | CNIB 2.0: Nova era da indisponibilidade de bens e seu uso nas execuções de título extrajudicial |