As serventias extrajudiciais integram o conceito de justiça multiportas e são uma opção eficiente para a solução de litígios
A ideia de uma Justiça Multiportas foi idealizada por Frank Sander, professor da Harvard Law School, no final da década de 1970 nos Estados Unidos, e surgiu como uma resposta à sobrecarga do sistema judiciário americano e à busca por soluções mais eficientes e acessíveis para os litígios. Essa teoria foi apresentada pela primeira vez na Conferência Pound, em 1976.
O conceito propunha uma transformação no modo como a justiça tratava os litígios, sugerindo que o sistema judicial oferecesse múltiplos métodos de resolução, tais como conciliação, mediação, arbitragem e negociação, adaptados às especificidades de cada conflito.
A proposta de Sander foi adotada inicialmente nos Estados Unidos, onde as cortes experimentaram métodos alternativos para reduzir a quantidade de processos e proporcionar soluções mais rápidas e satisfatórias. Outros países, como o Canadá e o Reino Unido, posteriormente, também passaram a implementar formas alternativas de resolução de conflitos (ADRs - Alternative Dispute Resolutions), de maneira gradual, buscando dar mais autonomia às partes e aliviar a carga do sistema judiciário.
Com o tempo, a Justiça Multiportas ganhou reconhecimento mundial, sendo vista como um meio de democratizar o acesso à justiça, diversificar as formas de tratamento dos conflitos e responder de maneira eficaz às diferentes demandas da sociedade.
Nesse contexto, Cappelletti e Garth, em estudos sobre o tema, classificaram as "ondas renovatórias" do processo civil em três grandes movimentos que influenciaram o direito processual em todo o mundo, especialmente no século XX.
A primeira onda surgiu na década de 1960 e tinha como foco ampliar o acesso à justiça para pessoas economicamente desfavorecidas. Por meio de mecanismos como a assistência judiciária gratuita e o patrocínio estatal de advogados para quem não poderia pagar, buscou-se nesta fase, corrigir a desigualdade no acesso ao Judiciário. Esse movimento se relaciona com a Justiça Multiportas ao tentar assegurar que todos, independentemente de recursos, possam ter acesso a uma solução de conflitos.
Na década de 1970, a segunda onda tratou de ampliar o acesso à justiça para grupos que detinham interesses coletivos, difusos ou homogêneos, como os consumidores e as minorias. Entre nós, isso influenciou a criação de leis como o CDC e a lei da ação civil pública, ambas, instrumentos que permitem a tutela de interesses de grupo. A Justiça Multiportas se insere aqui ao proporcionar vias alternativas de resolução para esses conflitos complexos e que exigem instrumentos diferenciados de mediação e conciliação.
Finalmente, a terceira onda começou na década de 1980 com foco na busca pela eficiência e qualidade da justiça. Isso envolve reduzir a morosidade e o acúmulo de processos judiciais. A Justiça Multiportas surge, nesse caso, como resposta, na medida em que ao desviar parte dos conflitos para métodos alternativos de resolução, promove uma economia de tempo e de recursos e evita a sobrecarga do Judiciário.
No Brasil, a ideia de Justiça Multiportas começou a ser incorporada como política pública de acesso à Justiça, com mais efetividade, nos anos 2000, ganhando um impulso significativo com a resolução 125 do CNJ, em 2010.
Essa resolução instituiu a Política Judiciária Nacional de Tratamento Adequado dos Conflitos de Interesses e orientou os Tribunais a implementarem CEJUSCs - Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania, espaços dedicados à realização de sessões de mediação e conciliação. O objetivo foi estabelecer uma política pública permanente de resolução alternativa de conflitos no país, reconhecendo a importância de métodos como a conciliação e a mediação para promover uma justiça mais célere e eficiente.
Com o advento do CPC/15, o Brasil consolidou a Justiça Multiportas em seu sistema processual geral. O CPC/15 estabeleceu a conciliação e a mediação como etapas obrigatórias nos processos cíveis, enfatizando a busca por uma resolução consensual antes do encaminhamento ao julgamento.
Neste artigo, será utilizado o termo extrajudicialização para se referir à possibilidade de solução de controvérsias anteriormente desempenhadas pelo Poder Judiciário para as serventias extrajudiciais e outros meios consensuais de resolução de conflitos. A escolha desse termo se dá pelo fato de que "desjudicialização" poderia sugerir a ideia de exclusão definitiva da apreciação judicial, enquanto a extrajudicialização ressalta que, embora a solução possa ocorrer fora do Judiciário, permanece resguardado o direito de recorrer a ele sempre que necessário.
A extrajudicialização tem transformado profundamente o sistema jurídico brasileiro, permitindo que inúmeros atos antes exclusivos do Poder Judiciário sejam realizados de forma mais simples, rápida e acessível nos cartórios extrajudiciais. Essa mudança reflete um novo olhar sobre a justiça em consonância com a ideia de justiça multiportas: Um modelo que prioriza a autonomia das partes, a desburocratização e a pacificação social. O cidadão, que antes precisava enfrentar processos longos e desgastantes, agora pode resolver questões de família, patrimônio e propriedade de maneira mais ágil, sem renunciar à segurança jurídica.
Desde a entrada em vigor da lei 11.441/07, é possível realizar divórcios, separações e dissoluções de união estável diretamente nas serventias extrajudiciais, quando consensuais e sem filhos menores ou incapazes, ou ainda, quando as questões envolvendo os menores forem previamente resolvidas judicialmente. Isso significa que casais que tomam a difícil decisão de encerrar uma relação podem fazê-lo de maneira digna, sem a necessidade de um processo litigioso. A escritura pública confere validade jurídica ao ato, garantindo que ambas as partes sigam em frente com suas vidas de forma célere, com menor custo e sem traumas adicionais.
O mesmo princípio se aplica aos inventários e partilhas extrajudiciais. Se há consenso entre os herdeiros e inexistência de testamento válido, a sucessão pode ser resolvida diretamente no tabelionato de notas, evitando anos de litígio judicial e custos elevados. Dessa forma, as famílias podem dar encaminhamento ao patrimônio do falecido com rapidez e tranquilidade, respeitando sua vontade e reduzindo desgastes emocionais.
No Registro Civil, esse fenômeno tem ampliado significativamente o acesso à cidadania. A possibilidade de mudança de nome, por exemplo, foi facilitada pela lei 14.382/22, permitindo que qualquer pessoa altere seu prenome uma vez, independentemente de justificativa, até um ano após atingir a maioridade. Além disso, o provimento 73/18 do CNJ consolidou o direito das pessoas transgênero de retificarem seu nome e gênero diretamente no cartório, sem necessidade de cirurgia, laudo médico ou autorização judicial, em conformidade com a decisão do STF na ADIn 4.275. Essas mudanças representam avanços na garantia da dignidade e da autonomia individual, reduzindo entraves burocráticos e assegurando maior reconhecimento jurídico às identidades pessoais.
Outro avanço significativo é o reconhecimento extrajudicial de paternidade. O laço entre pais e filhos é um dos mais importantes na vida de qualquer pessoa, e permitir que essa relação seja formalizada sem a necessidade de um processo judicial burocrático representa um enorme ganho social. O provimento 63/17 e suas alterações do CNJ trouxe ainda mais facilidades, possibilitando a realização de exames de DNA e a inclusão da paternidade no registro civil sem complicações, assegurando aos filhos o direito fundamental à identidade. Atualmente, a matéria é regulamentada pelo provimento 149/23.
Além disso podemos citar também a formalização extrajudicial da união estável por meio de termo no próprio registro civil ou ainda por escritura pública lavrada em cartório de notas, conferindo maior segurança jurídica ao vínculo afetivo e patrimonial dos companheiros. A escritura pública, além de permitir a definição do regime de bens e a facilitação de direitos sucessórios, possibilita a conversão direta da união estável em casamento, conforme previsto no Código Civil. A simplificação desses procedimentos reforça o papel das serventias extrajudiciais como agentes de pacificação social e de eficiência no sistema de justiça, garantindo soluções céleres, acessíveis e alinhadas às transformações sociais contemporâneas.
No campo do direito patrimonial, a regularização fundiária também foi impactada positivamente pela extrajudicialização. A lei 13.465/17 permitiu que casos de usucapião sejam resolvidos diretamente nos cartórios de registro de imóveis, desde que os requisitos legais sejam cumpridos. O resultado é um impacto real na vida de milhares de brasileiros que passam a ter sua propriedade reconhecida formalmente, garantindo segurança jurídica, acesso ao crédito e dignidade. Para muitos, esse é um passo fundamental para conquistar o sonho da casa própria sem enfrentar um processo judicial moroso.
Nessa esteira temos mais recentemente a possibilidade de adjudicação compulsória nas serventias extrajudiciais. Isso representa mais um avanço ao permitir que a transferência de propriedade seja formalizada diretamente nos cartórios de registro de imóveis, sem a necessidade de uma ação judicial. Regulamentada pelo provimento 150/23 do CNJ, essa modalidade possibilita que compradores de imóveis que já tenham cumprido suas obrigações contratuais, mas enfrentem resistência do vendedor em formalizar a escritura definitiva, possam obter o registro da propriedade de forma célere e desburocratizada. Trata-se de uma medida que garante maior segurança jurídica nas transações imobiliárias, evita o desgaste e os custos de um processo judicial e contribui para a efetividade do direito à moradia e à propriedade. Ao fortalecer o papel dos cartórios como facilitadores de soluções extrajudiciais, essa inovação reafirma a tendência de um sistema jurídico mais acessível, ágil e comprometido com a pacificação social.
Além disso, o provimento 67/18 do CNJ (atualmente regulamentado pelo provimento 149/23) trouxe também para os cartórios a possibilidade de atuar na mediação e conciliação de conflitos. A presença de notários e registradores como facilitadores de acordos reflete um novo paradigma de justiça, no qual a solução pacífica de disputas é incentivada antes que a via judicial se torne necessária. Essa iniciativa reforça o papel das serventias extrajudiciais como agentes de pacificação social, permitindo que conflitos sejam resolvidos de maneira célere e eficiente.
No âmbito econômico, os cartórios de protesto desempenham um papel essencial na recuperação de créditos, ajudando empresas e instituições financeiras e até mesmo o Poder Público a reduzirem inadimplências sem recorrer à justiça. O protesto de títulos e documentos de dívida e de certidões da dívida ativa é um mecanismo que estimula o pagamento de débitos de forma extrajudicial, beneficiando tanto credores quanto devedores, que podem negociar diretamente sem a necessidade de um longo processo judicial.
Outro instrumento de grande utilidade são as atas notariais, que conferem fé pública a fatos e eventos que podem gerar litígios no futuro. Seja para registrar provas digitais, documentar notificações extrajudiciais ou comprovar posse de um imóvel, esse recurso confere segurança jurídica e previne disputas, reforçando a importância dos cartórios na proteção dos direitos individuais e coletivos.
Vale ressaltar ainda que a extrajudicialização não significa a exclusão do Poder Judiciário, mas sim a otimização da justiça como um todo. Quando determinados atos podem ser realizados com a mesma segurança e legalidade, porém de forma mais ágil e descomplicada e em muitas vezes mais econômica, todos são beneficiados. O cidadão ganha autonomia com menor custo, o Estado reduz a sobrecarga no Judiciário e a sociedade como um todo se beneficia de um sistema mais eficiente. As serventias extrajudiciais, antes vistas apenas como órgãos burocráticos, assumem uma nova função social, aproximando a justiça da população e garantindo que direitos sejam exercidos com facilidade e segurança.
Essa transformação é, acima de tudo, um reflexo de uma sociedade que busca soluções inteligentes e acessíveis para seus desafios. A extrajudicialização veio para ficar, e sua expansão representa um passo fundamental para um sistema de justiça mais moderno, humano e eficiente.
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RASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.275, Relator: Ministro Marco Aurélio, julgamento em 1º de março de 2018, publicado em 15 de março de 2019. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 15 mar. 2019.
CAPPELLETTI, M., & GARTH, B. (1988). Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor.
MARZINETTI, Miguel (2018) Justiça multiportas e o paradoxo do acesso à justiça no Brasil: da falência do poder judiciário aos métodos integrados de solução de conflitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris.
Fonte: Migalhas