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Artigo: Os Cartórios como solução: uma resposta técnica ao debate sobre Reforma Administrativa, por Rainey Marinho
Publicado em 13/11/2025
A discussão sobre o projeto de Reforma Administrativa apresentada ao Congresso Nacional trouxe à tona, mais uma vez, o papel dos serviços notariais e de registro no Brasil. Os canais de informação vêm publicando diversos textos e artigos de opinião sobre o tema, o que é muito bem-vindo. Porém, de um modo geral, as análises sobre o setor ignoram o grande impacto econômico social dos serviços notariais e de registro. Não se mencionam os bilhões de reais economizados pelo Estado, os milhões de atos desjudicializados ou a rigorosa supervisão exercida pelo Poder Judiciário, sobretudo pelo Conselho Nacional de Justiça. Esta análise busca preencher essas lacunas, apresentando os fatos que nem sempre encontram espaço no debate público.Costuma-se repetir a informação equivocada de que os Cartórios representam um custo para a sociedade. A realidade, contudo, aponta em direção oposta. Os serviços notariais e de registro são autossustentáveis, financiados exclusivamente por emolumentos pagos pelos usuários, sem qualquer ônus aos cofres públicos. Além disso, somente em 2024, os Cartórios arrecadaram cerca de R$ 77 bilhões para o poder público através de taxas e impostos, segundo dados da sexta edição da publicação "Cartórios em Números", da Associação dos Notários e Registradores do Brasil (ANOREG/BR). Ainda segundo dados do setor, somente entre março de 2024 e agosto de 2025, o protesto de Certidões de Dívida Ativa (CDAs) garantiu a recuperação de R$ 82 bilhões em créditos públicos.
Mas o impacto econômico não se limita à arrecadação tributária. Esse mesmo levantamento realizado pela ANOREG/BR mostra que, nos últimos cinco anos, mais de 1 milhão de processos deixaram de tramitar no Judiciário, o que representou economia superior a R$ 2,3 bilhões aos cofres públicos.
A revista "Cartórios em Números" aponta que, por meio da desjudicialização, desde 2007, foram realizados mais de 50 milhões de atos via sistema extrajudicial, incluindo 2,6 milhões de inventários, 1,2 milhão de divórcios, 52,7 milhões de reconhecimentos de paternidade e 12,3 milhões de apostilamentos. Esses dados sugerem que, se há uma "anomalia" no sistema, ela reside na eficiência dos Cartórios, não na sua ineficácia.
Informações geradas pelos Tabelionatos de Protestos, divulgadas Instituto de Estudos e de Protestos de Títulos do Brasil (IEPTB), retratam a importância da atuação dos Cartórios para a recuperação de créditos. No período de março de 2024 a agosto de 2025, procuradorias municipais apresentaram um total de 7,7 milhões de títulos e foram recuperados R$ 2,9 bilhões. Já as procuradorias estaduais apresentaram, no mesmo período, 8,5 milhões de títulos, sendo recuperados R$ 8,7 bilhões. Na esfera federal - leia-se Procuradoria Geral da Fazenda Nacional e Procuradoria-Geral Federal) a recuperação de créditos foi de R$ 71,7 bilhões.
Se consolidarmos Municípios, Estados e União, o estudo nos mostra que foram apresentados, de março de 2024 a agosto de 2025, 28,4 milhões de títulos, o que corresponde a um aumento de 206,7% em relação ao mesmo período de 2023 quando foram apresentados 9,26 milhões de títulos. Por meio dos Tabelionatos de Protesto, foram recuperados R$ 82 bilhões. Esse volume imenso voltou aos cofres públicos graças ao trabalho realizado pelos Cartórios. São números expressivos que, curiosamente, não merecem destaque no debate público.
Algumas análises lamentam a existência de "balcões, carimbos e taxas", como se fossem relíquias de um passado arcaico. É preciso, no entanto, examinar o que esses balcões, locais onde a população deposita sua confiança, têm produzido. Novamente a publicação "Cartórios em Números - edição 2024" demonstra que a desjudicialização garante uma celeridade incomparável, quando se trata dos serviços dos Tabelionatos de Notas:
1 - Um divórcio consensual, que levaria cerca, de dois anos no Judiciário, com custo médio de R$ 2.300, é resolvido em 1 dia no Cartório por cerca de R$ 300.00
2 - Um inventário, que se arrastaria ao menos, dois anos na Justiça, com custos superiores a R$ 2.369,73 por processo. Já no Cartório o tempo é reduzido para um dia e custa apenas R$ 324, 00.
3 - O reconhecimento de paternidade, moroso, na Justiça (pelo ano menos dois anos e custa R$ R$ 2.369,73), mas no Cartório o processo é imediato e gratuito.
O casamento homoafetivo, possibilitado pela Resolução nº 175/2013 do CNJ, é outro exemplo eloquente. Enquanto no Judiciário o processo levaria pelo menos 2 anos e custaria R$ 2.369,73 (passando por sete etapas), no Cartório é realizado em um dia por R$ 570,15 (em apenas duas etapas), ou seja, a economia gerada desde 2013, apenas com este procedimento, foi de R$ 230 milhões.
É verdade que a rapidez pode ser surpreendente para quem está acostumado com a morosidade do sistema judicial. Mas talvez seja o caso de questionar se a lentidão deveria ser o padrão desejável. A desjudicialização, portanto, não é uma "distopia de balcões"; é uma política pública de sucesso que libera o Judiciário para casos complexos e garante ao cidadão a resolução célere de seus problemas.
Ao criticar os Cartórios como "balcões anacrônicos", parte do debate ignora a revolução digital em pleno andamento. Dados divulgados pelo Colégio Notarial do Brasil - Conselho Federal, mostram que a plataforma digital e-Notariado já realizou mais de 8,3 milhões de atos eletrônicos desde maio de 2020, com um engajamento de 82% dos notários do país.
Os números da digitalização nessa esfera são impressionantes: foram mais de 2,2 milhões de escrituras eletrônicas, 558 mil procurações eletrônicas, 1,6 milhão de atos via "e-Not Assina" e mais de 3,6 milhões de páginas autenticadas digitalmente. São 8.141 notários ativos no e-Notariado, oferecendo serviços que vão desde a emissão de certificados digitais notarizados até a realização de escrituras públicas por videoconferência. A plataforma e-notariado.org.br permite que o cidadão acesse todos os serviços de um Cartório "na palma da mão", seja de forma presencial (com coleta de dados biométricos) ou totalmente online (via videoconferência e pesquisa no Denatran). É difícil conciliar essa realidade com a imagem de "feudos anacrônicos" que algumas análises insistem em pintar.
Enquanto parte da cobertura pinta os Cartórios como uma oligarquia obsoleta e ineficiente, o que vemos na prática é justamente o contrário: Cartórios que se reinventam digitalmente, que conectam o cidadão, que implementam plataformas inovadoras e são reconhecidos internacionalmente pelo Banco Mundial por iniciativas como o eNotariado. Se privilégio houvesse, certamente não estaríamos na vanguarda mundial da desburocratização.¹
Para não deixar o Registro de Imóveis de fora e, ficando apenas na regularização fundiária urbana, os números comprovam a importância desse serviço prestado à sociedade brasileira: 60.732 regularizações registradas, 1.179.735 unidades regularizadas e 176.263 titulações concretizadas, garantindo à população a efetivação de direitos e a consolidação da segurança jurídica, dados fornecidos pelo Operador Nacional do Registro de Imóveis - ONR.
O Registro Civil das Pessoas Naturais, o Cartório da cidadania, onde muitos dos principais atos da vida dos brasileiros são realizados de forma gratuita, oferece números que sustentam importantes políticas públicas do Brasil. Ao acessar o portal de Transparência do Registro Civil, www.transparencia.registrocivil.org.br, qualquer cidadão obtém, em tempo real, informações e dados estatísticos sobre nascimentos, casamentos e óbitos realizados pelos 7.198 Cartórios de Registro Civil do País. São mais de 326 milhões registros, entre nascimentos, casamentos e óbitos.
Entre seus serviços essenciais, esse site que é fonte segura para os principais veículos de comunicação do Brasil, tem ambientes interessantes. Um deles é dedicado aos números das mortes pela covid-19 e outro trata especificamente do reconhecimento de paternidade. Isso mesmo, se for voluntário - com a concordância da mãe, em caso de filhos menores, ou dos filhos maiores de idade - o reconhecimento de paternidade poderá ser feito diretamente no Cartório. Mais um exemplo do bom serviço prestado à população pelos registradores brasileiros.
Além de negligenciar a função social extrajudicial, algumas análises distorcem a realidade ao afirmar que os Cartórios operam como "feudos" sem controle. Trata-se de uma afirmação curiosa, considerando que os serviços notariais e de registro estão entre as atividades mais fiscalizadas do país. A fiscalização é exercida tanto pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), através da Corregedoria Nacional de Justiça, quanto pelas Corregedorias Gerais de Justiça dos Tribunais Estaduais.
Os titulares de Cartório não são "donos" de um negócio privado, mas delegatários de uma função pública, ou seja, prestam um serviço público com gestão privada, sem gerar qualquer custo ao Estado, uma vez que não recebem subsídios nem recursos públicos para sua manutenção.
O ingresso na atividade notarial e registral ocorre exclusivamente mediante aprovação em concurso público de provas e títulos, considerado um dos mais rigorosos do país, que exige formação em Direito e avaliação objetiva, prática, oral e de títulos, assegurando que apenas os candidatos mais qualificados assumam a responsabilidade de exercer essa função essencial à Justiça e à cidadania.
Além disso, os notários e registradores são profissionais que respondem pessoalmente por seus atos nas esferas civil, penal e administrativa, sob constante supervisão do Poder Judiciário. Talvez algumas análises tenham confundido "delegação de função pública" com "privatização". São conceitos distintos, embora a confusão seja compreensível em um debate acalorado.
Algumas propostas sugerem, ainda que de forma implícita, que a solução para os supostos males dos Cartórios seria a "concorrência territorial e fé pública compartilhada com instituições certificadas". A proposta merece ser examinada com atenção. Quem seriam essas "instituições certificadas"? Empresas privadas, possivelmente ligadas a bancos e grandes corporações. E qual seria o resultado prático? Imagine um cenário em que um banco, credor de um financiamento de veículo, contrata uma empresa privada para realizar a busca e apreensão do bem, tarefa que foi, inclusive, delegada aos Cartórios de Registro de Títulos e Documentos pelo Marco legal das Garantias e que pode ser feita de forma célere, 100% informatizada e com segurança jurídica.
A empresa, remunerada pelo credor, iria conduzir o procedimento sem a imparcialidade e a fé pública de um delegatário público. O devedor, por sua vez, tem sua contestação dirigida ao próprio credor, que julga a validade de sua própria cobrança. Trata-se, nas palavras da jurista Moema Locatelli Belluzzo, de um verdadeiro modelo de "justiça privada", no qual "empresas privadas atuam à margem do sistema, sem fé pública, sem responsabilidade institucional e sem mecanismos de controle jurisdicional, o que compromete as garantias fundamentais do cidadão".²
A desjudicialização, ao contrário do que algumas análises sugerem, não é privatização. É a transferência de atos que não exigem a intervenção do juiz para agentes públicos (os delegatários), que continuam sob a chancela e o controle do Estado. Privatizar seria entregar a particulares, sem vínculo com o sistema de justiça, uma função essencial do Estado. A diferença é sutil, mas relevante, especialmente para quem está do lado mais fraco da relação contratual.
Algumas comparações recorrem ao exemplo da Suécia, onde os registros seriam "totalmente digitais e gratuitos". É uma comparação engenhosa, embora ignore algumas diferenças de contexto. A Suécia tem uma população de pouco mais de 10 milhões de habitantes, um território 20 vezes menor que o do Brasil e um sistema jurídico baseado na tradição do common law, completamente distinto do sistema romano-germânico brasileiro. Comparar o Brasil com a Suécia é um exercício válido, desde que se reconheça que estamos comparando realidades incomparáveis. É como sugerir que o Brasil adote o modelo de transporte público de Luxemburgo ou a política de defesa da Islândia. Tecnicamente possível, mas talvez não seja a solução mais adequada para um país continental com 215 milhões de habitantes e desafios estruturais próprios.
O modelo brasileiro, ao contrário do que algumas análises sugerem, é uma solução inteligente, adotada em diversos outros países, e adaptada à nossa realidade. A delegação da função pública a particulares, sob rigorosa fiscalização estatal, permite que o serviço seja prestado com capilaridade e eficiência, sem onerar os cofres públicos. Os 13.440 Cartórios distribuídos pelos 5.570 municípios do país garantem que o acesso à justiça chegue a todos os cantos do território nacional, um feito que o Poder Judiciário, com sua estrutura centralizada, jamais conseguiria alcançar. É um sistema que vem sendo aprimorado constantemente, com a digitalização massiva de serviços e a criação de plataformas como o eNotariado e o Sistema Eletrônico dos Registros Públicos (SERP).
Os Cartórios não são uma "anomalia" que sobreviveu à República, à industrialização e à revolução digital, como se repete vez ou outra. São uma instituição que se adaptou, evoluiu e se tornou um dos pilares da segurança jurídica no Brasil. Geram economia bilionária para o Estado, aliviam a sobrecarga do Judiciário, lideram a transformação digital dos serviços públicos e garantem ao cidadão o acesso rápido e seguro a serviços essenciais. Se há algo de anacrônico no debate, não são os Cartórios — é a insistência em atacá-los com base em preconceitos e desinformação, ignorando os fatos que estão disponíveis para quem quiser vê-los.
É sempre importante analisar o papel dos Cartórios, especialmente para se discutir como podem contribuir ainda mais com a sociedade. Quanto mais livre de preconceitos, quantos mais embasada em fatos, quanto mais sustentada por números objetivos, melhor será a qualidade desse debate.
¹https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2025/10/banco-mundial-convida-brasil-para-apresentar-plataforma-de-cartorios-digitais.shtml
² Artigo completo: "Busca e apreensão extrajudicial: papel dos Cartórios e impossibilidade de atuação de empresas", ConJur, 10/07/2025.
Rainey Marinho é presidente do Operador e do IRTDP Brasil - Instituto de Registro de Títulos e Documentos e de Pessoas Jurídicas Brasil.
Fonte: Portal Análise.
Data 13/11/2025
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